quinta-feira, 27 de agosto de 2009

FORMAÇÃO E PRÁTICA PEDAGÓGICA EM CLASSES HOSPITALARES: RESPEITANDO A CIDADANIA DE CRIANÇAS E JOVENS ENFERMOS




A criação de classes escolares em hospitais é resultado do reconhecimento formal de que crianças hospitalizadas, independentemente do período de permanência na instituição ou de outro fator qualquer, têm necessidades educativas e direitos de cidadania, onde se inclui a escolarização.

Esse não é fenômeno recente. Fonseca e Ceccim (1999) abordam o assunto e esclarecem que, a partir da segunda metade do século XX, observou-se que, em países desenvolvidos, como Inglaterra e Estados Unidos, orfanatos, asilos e instituições que prestavam assistência a crianças violavam aspectos básicos do desenvolvimento emocional das mesmas, por falta de atendimento integral. Concluiu-se igualmente que tais lacunas apresentavam o risco de seqüelas as quais, na vida adulta, poderiam evoluir para condições psiquiátricas sérias.

Decorreu daí a iniciativa de implementar experiências educativas para crianças e jovens internados em instituições hospitalares. Com o transcorrer do tempo, a providência foi também incorporada a hospitais brasileiros, com idêntico objetivo.

A despeito da justiça social dessa iniciativa, verificamos que, em nosso país, a escolarização de crianças e adolescentes hospitalizados não tem merecido atenção suficiente, por parte do poder público, seja em nível municipal, estadual ou federal. Na verdade, a ampliação dessa modalidade de educação ainda é incipiente em nosso país.

No âmbito das organizações da sociedade civil, temos algumas indicações da preocupação com o respeito aos direitos dessas crianças e adolescentes. O Departamento de Defesa dos Direitos da Criança, da Sociedade Brasileira de Pediatria, através dos participantes na 27a Assembléia Ordinária do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), ocorrida em Brasília, em 17 de outubro de 1995, elaborou um documento, aprovado por unanimidade e transformado em Resolução no 41. Entre os 20 itens que se referem aos Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizados encontra-se o de no 9, o qual preconiza: Direito a desfrutar de alguma forma de recreação, programa de educação para a saúde, acompanhamento do currículo escolar, durante sua permanência hospitalar.

A legislação brasileira reconhece o direito de crianças e adolescentes hospitalizados ao atendimento pedagógico-educacional. A esse respeito, merece destaque a formulação da Política Nacional de Educação Especial (MEC/SEESP, 1994 e 1995). Essa propõe que a educação em hospital seja realizada através da organização de classes hospitalares, devendo-se assegurar oferta educacional não só aos pequenos pacientes com transtornos do desenvolvimento, mas, também, às crianças e adolescentes em situações de risco, como é o caso da internação hospitalar (Fonseca,1999).

As providências mencionadas são muito importantes, especialmente se considerarmos que, apesar de acometida por uma enfermidade, a criança hospitalizada tem interesses, desejos, sonhos e direitos de cidadania, como qualquer outra pessoa de sua idade.

Dados do I Encontro Nacional sobre Atendimento Pedagógico-Hospitalar realizado no Rio de Janeiro em julho de 2000, indicam que no Brasil existem 67 classes hospitalares em funcionamento e o município do Rio de Janeiro contava com 11 dessas instituições em atividade e 17 professores atuando, destacando-se, entre essas, a classe hospitalar mais antiga ainda em funcionamento no Hospital Municipal Jesus (hospital público infantil), que iniciou oficialmente suas atividades em 14 de agosto de 1950.

Essas onze classes hospitalares em atividade no Rio de Janeiro são vinculadas à Secretaria Municipal de Educação e contam com professoras concursadas pelo município. Elas constituem uma extensão da escola no hospital, isto é, seguem o mesmo conteúdo didático sugerido pelo município, atendendo crianças e jovens desde a Educação Infantil até a quarta série do primeiro segmento do ensino fundamental. Devido às condições de saúde e peculiaridades do alunado atendido, desenvolvem percursos individualizados, a partir de temas emanados do multieducação – núcleo curricular básico do município.

Essas instituições podem ser consideradas como espaços não-formais de educação, uma vez que, como definido por Fávero (1980), a educação não-formal abrange qualquer tentativa educacional organizada e sistemática que se realiza fora dos quadros do sistema formal (de ensino), para fornecer determinados tipos selecionados de aprendizagem (p.23).

Gohn (1999 ) acrescenta que a educação não-formal designa um processo com quatro campos de dimensões, entre eles, um que abarca aprendizagem dos conteúdos da escolarização formal, escolar, em espaços diferenciados (pp. 98,99) – o que inclui a classe hospitalar. Segundo a autora, no espaço de educação não-formal existe a preocupação de se transmitir os mesmos conteúdos da escola formal, entretanto esse repasse é desenvolvido em espaços alternativos e com metodologias e seqüências cronológicas diferenciadas (p.102).

Em pesquisa realizada em quatro classes hospitalares do município do Rio de Janeiro com nove professoras participantes (Amaral, 2001), os resultados indicam que, do ponto de vista da formação acadêmica, predominou a formação universitária, havendo significativa presença de pós-graduadas. Entre as docentes, ficou claro o desejo de acesso a uma formação mais consistente com as demandas do trabalho nesses ambientes, de preferência no nível de especialização. Compreender e respeitar essa reivindicação implica a consciência de que, para atender à clientela de alunos hospitalizados, são necessários conhecimentos sobre a rotina hospitalar, medicamentos, diferentes tipos de enfermidades, dentre outros aspectos que não constituem práticas usuais de uma professora de escola regular e nem fazem parte do currículo da formação para o magistério, habitualmente. A ampliação das oportunidades de aperfeiçoamento profissional poderá preencher lacunas que a formação inicial docente deixou em aberto.

Não se pode desconsiderar, conforme registro das entrevistadas, que pouco se divulga sobre classes hospitalares no contexto universitário e, durante a graduação, não se tem informação sobre essa alternativa de prática docente. Nessa linha de pensamento, a possibilidade de continuar estudando após a graduação (em um curso voltado para a área pedagógico-hospitalar) só teria a acrescentar elementos qualitativos à sua prática cotidiana. Para reforçar essa proposta, recorremos às palavras das próprias participantes:

“A gente está sempre em busca de conhecimento que venha a somar para o nosso trabalho. A graduação deixa muito a desejar em relação à Educação Especial. A gente nem ouve falar em classe hospitalar”. Professora E.

“Um curso de especialização voltado para essa temática, a classe hospitalar, seria o ideal”. Professora C.

Dessa maneira seria possível viabilizar a difusão de experiências bem sucedidas, a busca cooperativa de solução para problemas do cotidiano, além de contribuir para aprofundar o conhecimento sistemático das peculiaridades que permeiam a assistência multidisciplinar ou interdisciplinar a ser prestada às criança ou adolescentes enfermos.

Por outro lado, como referimos, caberia preencher lacunas em termos de conhecimento científico sobre diferentes tipos de doenças, procedimentos apropriados a cada grupo de clientes, buscando-se sempre a contribuição integrada de enfoques como os da Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise, do Serviço Social, da Didática e da Pedagogia, de especialistas em ludoterapia, entre tantas outras áreas de fundamental importância para o trabalho dos professores em classes hospitalares.

Outra proposta que poderia ser atendida pela formação no nível de especialização em classes hospitalares, ou do trabalho de planejamento cooperativo em serviço, seria o preparo para a elaboração de um projeto político-pedagógico coerente com as necessidades e peculiaridades dessa clientela. Como em outras situações análogas, é evidente que um trabalho de qualidade não pode ficar à mercê do ensaio e erro ou restrito à boa vontade e capacidade de solidariedade e dedicação dos profissionais, por mais que esses aspectos sejam importantes.

Nessa perspectiva, as próprias universidades, no exercício da função de extensão universitária, poderiam promover experiências de apoio às instituições, na formulação, acompanhamento e avaliação da implementação de projetos político-pedagógicos apropriados aos objetivos e funções das classes hospitalares.

Também se fazem necessários estudos que subsidiem a formulação de diretrizes curriculares e metodologias de ensino-aprendizagem, a serem desenvolvidas junto às crianças e adolescentes que se encontram em situação particularmente desafiadora e que precisam ter garantidos seus direitos de cidadania.

A esse respeito, os resultados da pesquisa indicam que as professoras desenvolvem importantes iniciativas no sentido de adequar o currículo às demandas e necessidades do seu alunado. Porém, precisam de suporte pedagógico, diante da necessidade de pôr em ação um currículo que atenda às crianças e jovens com diferentes tipos de problemas de saúde e que, por isso, têm permanência curta, média ou de longa duração nas instituições hospitalares.

A prática pedagógica nesse espaço exige dos profissionais envolvidos maior flexibilidade, por tratar-se de uma clientela que se encontra em constante modificação, tanto em relação ao número de crianças que irão ser atendidas pelas professoras bem como no que diz respeito ao tempo que cada uma delas permanecerá internada e ainda o fato de serem crianças e jovens com diferentes patologias, requisitando diferentes intervenções. Logo, a atuação na classe hospitalar requer compreensão para a peculiaridade de que, mais do que em outras instituições, não existe uma receita pronta, um planejamento perfeito, uma cartilha de respostas a ser seguida, mas sim um desafio de se traçar, a partir de temas geradores, percursos individualizados.

As professoras recorrem, sempre que possível, à ajuda de acompanhantes das crianças, os quais precisam ser preparados para manifestar atitude positiva e de confiança na recuperação da saúde e/ou na adaptação às limitações presentes, garantindo a qualidade de vida. Não há dúvida da importância da parceria entre docentes e familiares, os quais desempenham relevante papel, como elemento de apoio e cooperação na preservação do equilíbrio possível entre os pequenos pacientes.

No que diz respeito aos profissionais de saúde envolvidos nesse processo, ainda existem algumas dificuldades a serem ultrapassadas, como o intercâmbio de informações acerca das patologias das crianças e jovens, a socialização do que está escrito nos prontuários ou ainda as recomendações a serem seguidas, de acordo com a enfermidade de cada paciente.

Acreditamos que tais dificuldades, teoricamente, seriam facilmente transponíveis e que poderão ser discutidas em seminários, reuniões ou mesmo simples encontros desses profissionais, que num diálogo franco e no trabalho cooperativo, poderiam avançar e apoiar-se mutuamente.

Além disso, os dados da pesquisa são eloqüentes no sentido de esclarecer que as professoras têm plena consciência de seu papel transformador nessa difícil realidade e acreditam na afirmação da saúde e da vida das crianças e jovens hospitalizados.

Para concluir, vale assinalar que nossa permanência no campo e o conseqüente envolvimento com as nove professoras e alunos das classes hospitalares dos quatro hospitais proporcionaram muita reflexão e esperança, além de convicções sobre o potencial do trabalho pedagógico junto aos espaços não convencionais, como é o caso das classes hospitalares. Ao mesmo tempo, pudemos inferir o quanto os cursos de graduação em Educação têm ficado à margem dessas alternativas...

Diante disso, são explicáveis as lacunas que afligem as professoras e outros profissionais que desenvolvem atividades técnico-pedagógicas e administrativas nesses espaços. Nessa linha de pensamento, a literatura analisada ao longo da pesquisa é categórica quanto à sua caracterização como eminentemente pedagógica. Decorre daí a premência de evitar o desenvolvimento de propostas meramente recreativas ou assistencialistas, sob o rótulo de classes hospitalares.

Da mesma forma, cumpre salientar a urgência de ampliação da proposta das classes hospitalares a todas as instituições, para garantir a cobertura universal de crianças e adolescentes hospitalizados, de acordo com suas condições e possibilidades. Nossos resultados não deixam dúvidas quanto à importância desse trabalho e os benefícios que ele traz não só para as crianças e jovens hospitalizados, mas para as famílias, para o corpo médico e para as professoras atuantes.

Inferimos igualmente, a partir de nossas observações, que as professoras entrevistadas têm enorme amor pelo que fazem, sem contudo perderem de vista a dimensão profissional. Por isso, buscam compartilhar com seus alunos a construção de conhecimentos, orientada para o exercício da cidadania. Sob esse ponto de vista, exercem o que chamamos de pedagogia do resgate: o resgate da saúde, a celebração da vida.

Lembramos ainda que as universidades que mantêm hospitais universitários para atendimento da população e prática hospitalar de seus alunos da área da saúde, poderiam incluir um projeto pedagógico-hospitalar, que teria potencial de prática dos acadêmicos da área da Educação e áreas como a psicologia, fonoaudiologia, enfermagem, serviço social, entre outras. Além da ampliação da abrangência da formação de futuros educadores universitários, essa providência seria muito relevante para as crianças e jovens hospitalizados. Além disso, constituiria enorme contribuição das universidades, no cumprimento de sua função social, respondendo a elevadas demandas da comunidade, promovendo um novo campo de atuação para o exercício da cidadania.
------
Daniela Patti do Amaral - (Mestra em Educação pela Universidade Estácio de Sá - Brasil)

Dr.ª Maria Teresinha Pereira e Silva - (Professora do Mestrado em Educação e Direito da Universidade Estácio de Sá - Brasil)


BIBLIOGRAFIA

AMARAL, D.P. Saber e Prática docente em classes hospitalares: um estudo no município do Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado em Educação). Rio de Janeiro: UNESA, 2000.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília, MEC/SEESP, 1994, 66p.

BRASIL. Conselho nacional dos direitos da criança e do adolescente. Resolução no 41, de 13 de outubro de 1995.

Direitos da criança e do adolescente hospitalizados. Diário Oficial, Brasília, 17 out. 1995. Seção 1, pp. 319-320.

CLASSE HOSPITALAR: atendimento pedagógico-educacional para crianças e jovens hospitalizados. Apresenta dados, informações e bibliografia sobre o atendimento de crianças e jovens hospitalizados, 1997-2001, Disponível em . Acesso em: 21 ago. 1999.

FÁVERO, O. Tipologia da educação extra-escolar. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, Instituto de Estudos Avançados em Educação, 1980.

______. Classe hospitalar: ação sistemática na atenção às necessidades pedagógico-educacionais de crianças e adolescentes hospitalizados. Revista Temas sobre Desenvolvimento, São Paulo, v. 7, no 44, pp.32-37, mai/jun, 1999.

FONSECA, E. e CECCIM, R. Atendimento pedagógico-educacional hospitalar: promoção do desenvolvimento psíquico e cognitivo da criança hospitalizada. Revista Temas sobre Desenvolvimento, São Paulo, v.7, no 42, pp.24-36, jan./fev., 1999.

GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal e cultura política: impactos sobre o associativismo do terceiro setor. São Paulo: Cortez, 1999. (coleção questões da nossa época, v.71).

Nenhum comentário:

Postar um comentário